O Peso Que Não Nos Pertence
O Peso Que Não Nos Pertence
Tenho notado que, quando escrevo esses artigos, muitas vezes sou julgada como se estivesse defendendo a abolição completa da equitação ou da indústria do cavalo.
Mas isso não é verdade.
O motivo é simples: eu consigo lidar com a coexistência da verdade e da condição humana.
A verdade é dura, muitas vezes incômoda.
A condição humana é feita de tradições, de culturas antigas, de práticas enraizadas.
E eu não fecho os olhos para nenhuma das duas.
Não existe texto que eu possa escrever, não existe argumento que eu possa apresentar, não existe ciência que já não tenha sido publicada e que, de repente, vá convencer a humanidade a aceitar e mudar.
Eu sou realista.
Apenas a exposição da verdade, sozinha, não vai transformar a indústria.
Por isso, peço que você leia este artigo não como um manifesto contra, mas como um convite a simplesmente absorver uma verdade paralela.
Não se sinta julgado por fazer parte da indústria, nem por amar cavalos dentro dela.
Apenas guarde no fundo da mente que existe uma realidade que não desaparece: a indústria continuará a existir — mas essa verdade também continuará existindo.
Todos nós sabemos o que acontece com um corpo humano quando carrega peso demais por tempo demais.
A palavra já está no nosso vocabulário: obesidade.
Ela traz junto uma lista de consequências conhecidas: sobrecarga nas articulações, desgaste precoce das cartilagens, dor crônica, falhas metabólicas, inflamação sistêmica, expectativa de vida reduzida.
Não existe debate sobre isso.
É ciência estabelecida há décadas.
E ainda assim, quando falamos de cavalos, escolhemos convenientemente esquecer tudo o que já sabemos.
O Corpo Para o Qual Fomos Desenhados
A evolução moldou tanto humanos quanto cavalos para carregar apenas o próprio peso.
– Os músculos, tendões e ossos foram calibrados para sustentar um equilíbrio interno.
– Cada articulação tem limites de compressão, torção e impacto ajustados ao tamanho natural do corpo.
– Nada, absolutamente nada, no design biológico sugere que esses corpos foram feitos para suportar um acréscimo constante de 15, 20 ou 30% além do peso natural.
No caso humano, quando engordamos além da conta, o corpo protesta.
No cavalo, quando montamos, criamos exatamente a mesma condição: uma obesidade artificial intermitente.
A Ilusão da Preparação
O contra-argumento aparece rápido:
“Mas nós treinamos os cavalos. Eles se adaptam. Assim como um humano na academia se adapta a pesos extras.”
Mas vamos ser honestos: isso se sustenta mesmo?
No humano, o levantamento de peso é voluntário, temporário e cuidadosamente dosado:
– O treino dura uma ou duas horas.
– Há dias de descanso programados para recuperação.
– O próprio atleta pode dizer “basta” quando sente dor.
E ainda assim, mesmo com toda essa estrutura, quantos atletas e praticantes de musculação sofrem lesões?
Quantos carregam para a vida problemas crônicos de joelho, ombro, quadril, coluna?
A resposta é clara: muitos. Porque o corpo não foi desenhado para sobrecarga constante — ele apenas se adapta enquanto pode.
No cavalo, o peso extra não é voluntário.
Não é temporário.
Não é negociado.
É imposto diariamente, por anos.
E aqui é importante ser preciso: não precisa ser o dia inteiro.
Bastam algumas horas montado, repetidas todos os dias, para criar o mesmo efeito cumulativo de sobrecarga e microlesão.
O cavalo não escolhe, não descansa quando precisa, não regula o esforço.
Ele apenas suporta. Até não conseguir mais.
O Corpo em Contradição
Aqui está o ponto crucial que raramente é dito: quando montamos um cavalo, não o tornamos obeso de forma contínua, mas de forma intermitente e contraditória.
1.: Algumas horas do dia ele carrega apenas a si mesmo.
2.: Outras horas, carrega como se fosse obeso.
Imagine se o seu corpo tivesse que se reorganizar diariamente entre pesar 70kg e depois 95kg, todos os dias, por anos.
Um momento normal, no seguinte com 25kg a mais sobre suas articulações.
Como ficariam seus joelhos? Sua coluna? Seus tendões?
Essa oscilação constante não é treino.
É confusão biomecânica.
O corpo nunca estabiliza em uma realidade só. E essa instabilidade gera compensações, microlesões e dores que muitas vezes só aparecem anos depois, quando já é tarde demais.
E quem convive com cavalos sabe:
– o passo que encurta sem chegar a ser uma claudicação,
– a rigidez que aparece cedo,
– a relutância em ser montado em certos dias.
São sinais sutis, mas reais. Não é preciso esperar por um exame clínico para saber que existe dor — basta observar com olhos abertos.
A Diferença Entre Nós e Eles
No humano, o sobrepeso pode ser controlado.
Podemos emagrecer, mudar hábitos, buscar ajuda médica.
No atleta, podemos parar o treino, ajustar a carga, ouvir o corpo.
O cavalo não tem essa voz.
Não pode se recusar a ser montado.
Não pode pedir descanso.
Não pode escolher o que carrega.
Ele apenas cala e compensa.
Até que o corpo não consiga mais esconder as falhas.
Então, respondendo à pergunta:
“Será que podemos preparar um corpo — humano ou equino — para carregar peso além do design natural sem lesões?”
A resposta é simples: não sem custo.
Podemos adiar as consequências, podemos mascarar os sinais, podemos criar adaptações temporárias.
Mas nunca eliminamos o preço.
O corpo humano paga com microlesões acumuladas.
O corpo do cavalo paga com dor silenciosa, degeneração precoce e, muitas vezes, descarte quando já não serve mais.
O Que Precisamos Admitir
O problema não é a ciência não saber.
Ela já sabe.
O problema é que nós não queremos ouvir, porque aceitar essa verdade exigiria mudar tudo:
– repensar a equitação,
– redefinir limites de peso,
– admitir que parte do que fazemos é insustentável.
Não queremos encarar que montar um cavalo é impor a ele uma condição que em nós mesmos chamaríamos de doença.
Mas até que tenhamos coragem de dizer isso em voz alta, continuaremos fingindo que não sabemos — e continuaremos a transformar cavalos em corpos sobrecarregados, vivendo uma obesidade que não escolheram, e da qual nunca poderão escapar.
A Comparação Que Nunca Deveria Existir
É curioso — e triste — como os humanos insistem em se justificar comparando a vida dos cavalos com a nossa.
Quantas vezes já ouvi a frase: “Mas nós também temos que trabalhar para viver, por que eles não?”
À primeira vista parece lógico. Mas, olhando mais fundo, é uma comparação que nunca deveria existir.
O trabalho humano é uma prisão criada por nós mesmos
O jeito como vivemos hoje — o relógio, o escritório, a produção em massa, a competição, o dinheiro — tudo isso não veio da vida, veio da indústria que nós mesmos criamos.
Não foi a natureza que nos obrigou a acordar às 6h, sentar em uma cadeira, ficar oito horas em frente a uma máquina ou tela.
Não foi a vida que desenhou nossos corpos para isso.
Foram nossas próprias estruturas sociais, econômicas, políticas que nos enfiaram nesse molde.
Dizer que o cavalo também tem que “trabalhar” porque nós trabalhamos é esquecer um detalhe: nós inventamos o nosso próprio trabalho.
Nós criamos esse sistema.
E depois tentamos usar esse sistema como régua para medir a vida de outro ser.
O cavalo não criou o sistema humano
O cavalo não pediu salário.
Não inventou sela, não fundou associação, não criou competição.
Tudo isso foi imposto por nós.
E ainda assim usamos a nossa realidade distorcida para justificar a sobrecarga dele:
“Se eu preciso, ele também precisa.”
É uma comparação irônica porque funciona só de um lado.
Nunca comparamos humanos a cavalos no que realmente importa:
– a habilidade de viver no presente,
– a sabedoria de existir sem destruir,
– a harmonia com a própria natureza.
A falsa adaptação
Alguns argumentam: “Mas o humano se adaptou. Nós aprendemos a viver dentro desse modelo.”
Será mesmo?
Os dados da saúde dizem outra coisa.
– Doenças cardíacas, diabetes, obesidade, depressão, ansiedade.
– Lesões por esforço repetitivo, coluna degenerada, articulações desgastadas.
Tudo isso nasce não de um “destino biológico”, mas da maneira como escolhemos viver.
Não nos adaptamos.
Nós nos adoecemos.
O corpo humano protesta todos os dias contra o modelo que criamos.
A verdade desconfortável
Comparar cavalos a nós é uma falácia.
Porque nós não somos modelo de nada.
O modo como vivemos e trabalhamos não vem da criação da vida, vem da criação da indústria.
E os resultados estão à vista:
somos uma espécie que se orgulha de “ter se adaptado”, mas que passa a vida inteira tratando doenças que nós mesmos causamos.
Então, quando dizemos que o cavalo também precisa trabalhar, não estamos sendo justos — estamos apenas tentando arrastar outro ser para dentro da mesma prisão que inventamos para nós.
Um convite, não uma condenação
Quero reforçar: este texto não é contra você, cavaleiro, amazona, criador ou amante dos cavalos.
Não é um julgamento pessoal.
É apenas uma verdade que precisa ser colocada na mesa.
A indústria vai continuar existindo, porque faz parte da condição humana preservar tradições e resistir a mudanças.
Mas, paralelamente, a verdade também vai continuar existindo: o cavalo não nasceu para carregar mais do que a si mesmo.
Se pudermos, ao menos, guardar essa verdade no fundo da mente, sem medo e sem culpa, já será um passo.
Um passo para refletirmos juntos sobre como podemos respeitar mais — mesmo dentro da realidade que temos.



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